sábado, 16 de abril de 2011


FILOSOFIA E FORMAÇÃO HUMANA

Texto de Marcos Antônio Lorieri
                               
INTRODUÇÃO.

Nos últimos anos tem havido análises, estudos, debates, posicionamentos e publicações a respeito da relação da Filosofia com a Educação. Três aspectos têm sido evidenciados em tal relação: filosofia como processo de reflexão que pensa a educação e que busca sentidos ou significados para a ação educativa; filosofia como conteúdo necessário na formação dos educadores; filosofia como componente necessário na formação de crianças e jovens. Nos dois últimos chama a atenção a idéia de formação, tanto a idéia em si mesma, quanto a idéia do papel formativo da filosofia. Há duas questões aqui: o que entender por formação humana que inclui a idéia de educação como formação e como entender o papel formativo – educativo - da Filosofia.
Nos estudos que desenvolvemos nos colocamos ambas as questões. A primeira, por necessidade de configurar e reconfigurar continuamente nossos entendimentos sobre o processo educativo chamando, para tal, os aportes da Filosofia além dos das Ciências. Ambos são constitutivos do campo teórico da educação. A segunda, pela necessidade de esclarecimentos sobre o papel formativo da Filosofia. A busca por esclarecimentos sobre o papel formativo da Filosofia insere-se numa busca mais ampla: a da compreensão do campo de estudos e pesquisas da Filosofia da Educação.
Na linha de pesquisa da qual participam os autores deste texto e nas leituras e análises feitas chamaram atenção do grupo abordagens a respeito da expressão formação humana quase sempre utilizada para indicar o próprio processo educativo. Um dos autores brasileiros que utiliza com freqüência a expressão é Antônio Joaquim Severino. A partir de seus textos foram desenvolvidas reflexões a respeito e iniciadas buscas em outros pensadores.
Um dos objetivos da apresentação deste trabalho é promover debates sobre o tema que possam ajudar na sua elucidação e colher outros subsídios para a continuidade da pesquisa. 
 
FORMAÇÃO

Formação tem a ver com formar, com forma. Processo ou conjunto de ações ou de procedimentos que dão forma. Processo constitutivo de uma configuração. O verbo constituir apresenta-se, amiúde, quando se pensa em formação. É dar forma a algo. No caso dos seres humanos pode-se e, julgamos que se deva, falar em dar-se uma forma  no conjunto das relações humanas.
É antiga, e permanece, a discussão sobre forma e sua noção: desde a idéia platônica de essência para se referir à “figura latente e invisível”, “só captável pela mente” (FERRATER MORA, verbete Forma), à qual Platão se refere com a palavra eidos, passando pela noção aristotélica de forma como a essência necessária e que se distingue da matéria, mas que juntamente com ela configura algo; até certas posições que dirão que a forma é a própria essência já dada aos seres e que provém de algum poder a eles externo. Nessa visão as formas já estariam dadas a priori e, aos seres, competiria realizá-las na sua temporalidade como com-formações. A idéia de conformação possibilitou muitos caminhos indicativos de constituição - de formação -  das pessoas. Se a forma é previamente dada, resta conformar-se ou ser conformado. Um tal entendimento gerou e tem gerado reprováveis autoritarismos pedagógicos.
   Em abordagem diversa, a forma é vista como resultante da constituição dos seres a qual ocorre no conjunto de relações que se dão na natureza, na sociedade e historicamente: sem que haja planos aprioristicamente dados e sem a idéia de essências ou de formas determinantes do real, como o querem as posturas essencialistas. Em contraposição a estas últimas, afirma-se a constituição histórica da maneira humana de ser.
Estas posturas estão, de algum modo, presentes nos mais variados discursos, inclusive nos discursos pedagógicos. Como pensar, diante delas, a “forma humana”? Há uma forma humana? Há uma essência humana? Ou uma natureza humana? Ou dever-se-á falar em condição humana que se vai constituindo historicamente? O que é formação humana?
É freqüente dizer-se que educação é processo de formação humana. Um processo de constituição da humanidade dos humanos? Ou um processo de constituição da humanidade nos humanos? Se a primeira, a humanidade dos humanos é construída na própria prática humana do existir; se a segunda haveria uma humanidade a ser realizada em cada ser humano. Estas questões trazem ainda uma outra: o que é mesmo ser humano? O que é mesmo humanidade? E, por certo, daí decorrente, uma outra: seres humanos devem ser formados? Devem ser constituídos como tais? Se sim, em que consiste o processo de sua formação? Há uma profunda relação da Antropologia Filosófica com a Educação.
 
FORMAÇÃO HUMANA.

No âmbito da Filosofia não são raras reflexões sobre a educação vista, com freqüência, como formação. Kant, por exemplo, dedica um texto sobre a educação: “Ueber Paedagogie”  traduzido no Brasil com o título: Sobre a Pedagogia (1996). Neste texto podem ser encontradas afirmações reveladoras de uma concepção predominante de educação e de formação humana até os dias de hoje.
 “Nascemos humanos, mas isso não basta: temos também que chegar a sê-lo”, diz um autor do nosso tempo. (SAVATER, 1998, p. 29). E diz mais: “A condição humana é em parte espontaneidade natural, mas também deliberação artificial: chegar a ser totalmente humano – seja humano bom ou humano mau – é sempre uma arte.”(idem, p. 31). Assemelha-se a idéias de Kant. No início de Sobre a Pedagogia lê-se: “O homem é a única criatura que precisa ser educada. Por educação entende-se o cuidado de sua infância (a conservação, o trato), a disciplina e a instrução com a formação.” (KANT, 1996, p. 11). Mais à frente diz: “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” (KANT, 1996, p. 15).
   Nessa perspectiva o ser humano precisa da educação, pois é ela que o faz humano: a educação o forma; ela o constitui como humano. Kant insiste na idéia de se dar uma forma conveniente ao humano: “É entusiasmante pensar que a natureza humana será sempre melhor desenvolvida e aprimorada pela educação e que é possível chegar a dar aquela forma que em verdade convém à humanidade.” (1996, p. 17).
 Que forma convém ao ser humano? Haveria uma fôrma à qual se devem submeter ou conformar os que nascem para que desenvolvam seus “germes” de humanidade a um ponto de conveniência? Conveniência para quem?  Kant fala mesmo em germes: “Há muitos germes na humanidade e toca a nós desenvolver, em proporção adequada, as disposições naturais e desenvolver a humanidade a partir dos seus germes e fazer com que o homem atinja sua destinação.” (KANT, 1996, p. 18). Estes germes não são destinatários do mal, pois, “no homem não há germes, senão para o bem” (idem, p. 24). Cumpre à educação, a esta arte nada fácil e que deve ser constantemente aperfeiçoada (p. 19), canalizá-los para o bem. Desvios poderá haver, mas se devem à falta de uma educação conveniente. Uma educação conveniente é aquela que inclui o cuidado, a disciplina e a instrução com formação, como já apontado acima. Kant reitera a necessidade destes três aspectos no processo educativo ao longo de sua exposição e os explicita de diversas maneiras.
   Consideremos o que diz sobre formação. “O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução.” (1996, p. 14) e ela, a formação, é:

1) Negativa, isto é, disciplina, a qual impede os defeitos; 2) positiva, isto é, instrução e direcionamento e, sob este aspecto, pertence à cultura. O direcionamento é a condução na prática daquilo que foi ensinado. Daqui nasce a diferença entre o professor, o qual é simplesmente um mestre, e o governante, o qual é um guia. O primeiro ministra a educação da escola; o segundo, a da vida. (KANT, 1996, p. 30-31). (Os itálicos constam no original). [1][1][1]

 A formação humana, para Kant, inclui a disciplina que é negativa porque “impede ao homem de desviar-se do seu destino, de desviar-se de sua humanidade” (idem, p. 12); e inclui a instrução ou a cultura – “pois que assim pode ser chamada a instrução” (idem, p. 16). “Quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.” (idem, p. 16). Para ele a cultura abrange a instrução e vários conhecimentos e talvez, por essa razão, ela envolve um trabalho professoral de informação, que ele denomina também de escolástico e de direção, de governança ou de guia para a vida. Tudo isto é formação humana, ou educação, para Kant. A formação humana torna o homem humano. A formação é constituidora da humanidade no humano. Há germes de humanidade que é necessário desenvolver de certa maneira: cultivar na direção da realização da humanidade. “A espécie humana é obrigada a extrair de si mesma pouco a pouco, com suas próprias forças, todas as qualidades naturais que pertencem à humanidade.” (KANT, 1996, p. 12).
   Mas qual humanidade? Há uma em especial, já definida? Sim e não: há uma nos germes de humanidade; mas há fins humanos que devem ser construídos nas “circunstâncias”. “A cultura é a criação da habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejemos. Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado às circunstâncias.” (idem, p. 26). Como assim? - podemos nos perguntar. Talvez Kant aposte na inexorabilidade da Razão que apresenta os fins para quem se desenvolve ou supera a minoridade de que fala em Que é isto a Ilustração.  “Bons são aqueles fins que são aprovados necessariamente por todos e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um.” (KANT, 1996, p. 27). 
 Não é fácil esta tarefa de definição dos fins, mas esta é a obrigação da humanidade. Os seres humanos, diferentemente dos animais, que cumprem destinos sem o saber, são obrigados “a tentar conseguir o seu fim; o que ele (o ser humano) não pode fazer sem antes ter dele um conceito.” (idem, p. 18). Ter um conceito aprovado por todos e que seja o de cada um. A Razão indica a forma de ser gente e o caminho da formação.
 Kant fala de uma humanidade definida nos “germes de humanidade” e, ao mesmo tempo de uma humanidade a ser construída, quanto aos seus fins, nas “circunstâncias”. Indica, também, fins humanos definidos pela Razão. Marx e Engels apontam as circunstâncias como constituidoras dos humanos, mas circunstâncias constituídas, elas mesmas pelos próprios humanos nas relações que estabelecem com a natureza e entre si.
No campo temático da Filosofia da Educação a principal pergunta é a que diz respeito ao ser humano e ao significado de sua existência.
(...) de um ponto de vista mais fundante, pode-se dizer que cabe à filosofia da educação a construção de uma imagem do homem. (...) Trata-se do esforço com vista ao delineamento do sentido mais concreto da existência humana. (...) Como tal, a filosofia da educação constitui-se como antropologia filosófica. (SEVERINO, 1990, p. 21).

A Filosofia da Educação deve ser entendida como “uma elaboração com vistas à elucidação radical do sentido da educação” no contexto da existência humana. (p.119). Este é o primeiro e grande tema da investigação da Filosofia da Educação que, “desse ponto de vista (...) é fundamentalmente uma antropologia, pois toda significação possível da educação está atrelada à da existência humana na sua integralidade.” (idem, p. 119).
   Numa insistência que parece denunciar um esquecimento imperdoável da dimensão antropológica em muitas abordagens da Filosofia da Educação, Severino reitera este ponto de vista em 2004, em nova publicação:

... impõe-se à Filosofia da Educação a construção de uma imagem do homem como sujeito fundamental envolvido na educação. Trata-se de delinear o sentido mais concreto da existência humana com relação às suas coordenadas de educabilidade. Como tal, a Filosofia da Educação constitui-se como uma antropologia filosófica, entendida como tentativa de construção de uma visão integrada do ser humano. (SEVERINO, 2004 p. 31).
 É a partir destas premissas que Severino pode falar, também, em formação humana. Ele se pergunta: “O que vem a ser essa formação?” (SEVERINO, 2002, p. 185). É o desenvolvimento das pessoas como “pessoas humanas”: “Nós nos formamos quando nós nos damos conta do sentido de nossa existência, quando tomamos consciência do que viemos fazer no planeta, do porque vivemos”. (idem, p. 185). Esta tomada de consciência é o que ele denomina de dimensão subjetiva que exige o desenvolvimento de sensibilidades que a constituem: a sensibilidade epistêmica, a sensibilidade aos valores morais (consciência ética), a sensibilidade aos valores estéticos (consciência estética) e a sensibilidade aos valores políticos (consciência social).

É toda esta esfera do exercício da dimensão subjetiva da pessoa que nos torna efetivamente humanos. Não bastam a integridade física, biológica, o bom funcionamento orgânico, as forças instintivas para uma adequada condução da vida humana. Sem a vivência subjetiva continuamos como qualquer outro ser vivo puramente natural, regido por leis pré-determinadas, vale dizer, sem possibilidades de escolhas, sem flexibilidade no comportamento. (SEVERINO, 2002, p. 185).  

 Morin (2005) acrescenta a afetividade como elemento presente na subjetividade e que revela a humanidade do homem em suas características não apenas racionais (sapiens) mas, também, emocionais que ele coloca na dimensão a que denomina de demens.
Esta vivência subjetiva não se dá, porém, descolada das circunstâncias histórico-sociais, como também destaca Morin (2005a, p.78): o “sujeito surge para o mundo integrando-se na intersubjetividade, no seu meio de existência, sem o qual perece.” Ele não fala de formação, neste momento de seus estudos (Método 5), mas de estruturação do sujeito mediada por outros sujeitos, entendendo que a constituição do indivíduo/sujeito só ocorre na relação pessoa/pessoa: “cada vida autônoma é possuída no interior e no exterior por outras vidas” (MORIN, 2005b, p. 442). E nesse movimento a cultura permeia o contato e o convívio, inserindo a tradição e também constituindo o indivíduo/sujeito, por intermédio, principalmente da linguagem.
 Para Kant, como já indicado acima, “quem não tem cultura de nenhuma espécie é um bruto; quem não tem disciplina ou educação é um selvagem.”  Para Morin, (2005a) “o primeiro capital humano é a cultura. O ser humano, sem ela, seria um primata do mais baixo escalão.” (p. 35). No humano não há dissociação do biológico e do cultural, assim como não há dissociação do que é individual e do que é social.

Como não ver que o mais biológico – o nascimento, o sexo, a morte – é, ao mesmo tempo, o mais impregnado de símbolos e de cultura? Nascer, morrer, casar-se são também atos religiosos e cívicos. Nossas atividades biológicas mais elementares, comer, beber, dormir, defecar, acasalar-se estão estreitamente ligadas a normas, interdições, valores, símbolos, mitos ritos prescrições, tabus, ou seja, ao que há de mais estritamente cultural. Nossas atividades mais espirituais (refletir, meditar) estão ligadas ao cérebro, e as mais estéticas (cantar, dançar) estão ligadas ao corpo. O cérebro, pelo qual pensamos, a boca, pela qual falamos, a mão, com a qual escrevemos, são totalmente biológicos e, ao mesmo tempo, culturais. (MORIN, 2005a, p. 53).

Mas o que vem a ser a formação? É processo do devir humano como devir humanizador, mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa. Para nos darmos conta  do sentido desta categoria, é bom lembrar que ela envolve um complexo conjunto de dimensões que o verbo formar tenta expressar: constituir, compor, ordenar, fundar, criar, instruir-se, colocar-se ao lado de, desenvolver-se, dar-se um ser.  É interessante observar que seu sentido mais rico é aquele do verbo reflexivo, como que indicando que é uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito. Nesta linha, afasta-se de alguns de seus cognatos, por incompletude, como informar, reformar e repudia outros por total incompatibilidade, como conformar, deformar. Converge apenas com transformar. (SEVERINO, 2006, p. 2 ).

 Ecos kantianos? Talvez, nesta e em outras citações. Nas anteriores, atribui um grande peso à dimensão subjetiva entendida como a tomada de consciência que exige o desenvolvimento de sensibilidades que a constituem: a sensibilidade epistêmica, a sensibilidade aos valores morais (consciência ética), a sensibilidade aos valores estéticos (consciência estética) e a sensibilidade aos valores políticos (consciência social). Nesta última aponta o devir cultural como o devir humanizador do homem e insiste na riqueza do verbo reflexivo (dar-se um ser) que é o que melhor indica o que é formação humana: uma ação cujo agente só pode ser o próprio sujeito, ainda que numa relação antagônica e complementar com a cultura ou com a sociedade.

Minha idéia de formação é, pois aquela do alcance de um modo de ser, mediante um devir, modo de ser que se caracterizaria por uma qualidade  existencial marcada por um máximo possível de emancipação, pela condição de sujeito autônomo. Uma situação de plena humanidade. A educação  não é apenas um processo institucional e instrucional, seu lado visível, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano, seja na particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva. (SEVERINO, 2006, p. 2).

Formação humana é tema, por diversas razões, da Filosofia e, em especial da Filosofia da Educação. O empreendimento aqui iniciado é um convite para continuar a filosofar a respeito. Um convite aos autores do texto e um convite aos que quiserem e puderem ajudar. No momento histórico em que vivemos talvez seja esse um importante desafio para a educação que deve poder contar com o papel reflexivo e crítico da Filosofia.










[1][1]   O tradutor informa que direcionamento, professor e governante são traduções, respectivamente, dos seguintes termos no original: anfuerung, informator e hofmeister


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